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Reportagens da CâMerA ViAjANTe
 
Tiago Santana e a paisagem humana do nordeste brasileiro
por Bruno Alencastro - repórter colaborador

 

“Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mas protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se.”

(Trecho do livro “Infância”, de Graciliano Ramos)

Nesses quase vinte anos dedicados à fotografia, Tiago Santana demonstra uma sensibilidade para essa escrita com a luz comum a poucos. Abordando temas como a religiosidade, o cotidiano e a paisagem humana do nordeste brasileiro, Santana registra poesia em suas fotografias.

Em seu mais recente trabalho, “O chão de Graciliano”, o autor pretendeu “fazer com imagem, o que Graciliano fez tão maravilhosamente bem com as palavras”. Para isso, utilizou-se de detalhes, fragmentos desse cenário descrito por Graciliano. Em entrevista à Câmera Viajante, Tiago Santana falou sobre essa experiência, além de sua relação com a fotografia. Confira.

Como tudo começou

O fotógrafo Tiago Santana é natural de Crato, município localizado no interior do Ceará, vizinho a Juazeiro do Norte. E foi em meio a esse universo de religiosidade, muito em função da romaria do Padre Cícero, que Santana iniciou o seu envolvimento com a fotografia. “Por conviver com esse universo visualmente tão forte”, explica o fotógrafo. “Porque lá, realmente, para quem não conhece, é um celeiro de cultura popular, arte popular, de grupos folclóricos. Sem falar na questão da religiosidade, das romarias em si. É uma coisa muito rica, e isso influenciou muito na minha infância”.

Santana conta que chegou a fazer Engenharia Mecânica, mas a lembrança “daquelas imagens” sempre ficou muito presente na sua cabeça. “Através de um evento de fotografia promovido pela Funarte - Semanas Nacionais de Fotografia – foi que eu percebi que existiam pessoas discutindo fotografia, pensando fotografia. Aí isso me despertou mais ainda para esse universo. Então eu fui, aos poucos, deixando a Engenharia e mergulhando realmente de cabeça na fotografia. E com o objetivo principal de fazer um trabalho sobre aquele meu desejo maior, sobre aquele universo de Juazeiro do Norte, onde eu nasci”.

“Benditos” oito anos de formação

Além de ser um registro do seu primeiro trabalho publicado, o livro Benditos oportunizou a Santana um verdadeiro amadurecimento do seu trabalho como fotógrafo. “Eu poderia dizer que a minha formação aconteceu nesse período, fazendo o Benditos” explica ele. “É uma coisa que você pensa, elabora e vai aprendendo no processo. E nesse livro eu fui aprendendo. Aprendi a ser fotógrafo fazendo o livro. Porque, na época, nem tinha curso de formação em fotografia. A formação era realmente autodidata, ou através de alguns cursos. Essas Semanas Nacionais de Fotografia que eu te falei, sempre tinham oficinas. Era um momento de aprendizado”.

Benditos é o resultado de oito anos dedicados pelo autor a esse projeto (1992-2000). E para traduzir em imagens o “clima” de Juazeiro do Norte, Santana trabalhou exclusivamente com imagens em preto e branco. Para ele, esse processo de pensar um trabalho, refletir sobre ele, é fundamental para qualquer fotógrafo. Ou seja, pensar em todas as etapas envolvidas na concepção de seu trabalho, “refletindo sobre o quê você está querendo abordar, qual história você quer contar. Porque na realidade você está contando, interpretando determinada situação”.

No caso de Benditos , Santana garante que a escolha do preto e branco não foi à toa. “Ele (preto e branco) reforça o que eu queria dizer, essa coisa do mistério daquele lugar. Você tem menos interferência. A cor distrai um pouco nesse sentido, da tensão que eu queria colocar nas fotos. Eu queria que fosse uma coisa forte, pesada, como é pesado de certa forma o que estou retratando. Acho que a cor não ajudaria nesse sentido. Acho que, no preto e branco, você concentra mais esse ‘clima' que eu queria mostrar”.

Além disso, ainda com relação à escolha pelo preto e branco, Santana conta que considerou, também, a forte relação que Juazeiro tem com a xilogravura. De acordo com Santana, “a xilogravura é aquela coisa dura mesmo, traço na madeira e carimbado. E é preto e branco, sem nenhum meio tom. Uma coisa dura. E eu até coloco no livro, tem umas miniaturazinhas de xilogravura, que é para fazer uma referência. Assim como os xilógrafos de Juazeiro contam a história da cidade através dessa técnica, eu estava contando através das fotos. Até o momento de imprimir o livro, eu também queria uma coisa mais pesada, que tivesse mais preto do que o normal, às vezes até fora do padrão. Porque, existia esse interesse, eu queria que fosse assim. Meio tom não me interessava; me interessava era o contraste, a dureza, o preto”.

Fotojornalimo X Arte-reportagem

Com relação ao fotojornalismo brasileiro, para Tiago Santana, nós vivemos num momento em que o quê menos importa é o conteúdo. “Quanto mais rápido você der uma informação, é mais importante do que o conteúdo dela”, explica o fotógrafo. E isso nada mais é, de acordo com Santana, do que “um grande retrocesso”. “Você pega uma Realidade da vida, que eu acho que foi uma revista que marcou, o cara se dedicava meses às vezes ao seu trabalho. Eu sei disso porque o Audálio Dantas, que é um jornalista da época da Realidade , disse que teve uma edição especial do Nordeste, que a redação se transferiu para o Recife. Ficou lá meses, para produzir a edição. Hoje em dia as pessoas fazem tudo por telefone, às vezes nem mandam o fotógrafo, pegam na internet. Ou seja, essa preocupação com a elaboração da imagem tem sido meio que descartada, deixada de lado”.

Uma saída encontrada por Santana para fazer esse caminho inverso, isto é, dedicar-se meses a um mesmo projeto, é através da publicação de seus livros. “Eu acho que esse livro do Graciliano ( O Chão de Graciliano ) resgata um pouco essas grandes reportagens. É uma coisa que você se dedica, que você mergulha no tema, volta várias vezes. O Audálio chama de ‘arte-reportagem'. Eu nem fico falando se é fotografia, se é arte ou não, porque essa não é a questão. Mas isso é uma coisa a se pensar. Pensar imagem, elaborar imagem, pensar mais sobre isso é importante hoje. A gente está vivendo uma explosão de imagem, para tudo quanto é lado” enfatiza o fotógrafo.

Relação fotógrafo-fotografado

Em projetos como esses desenvolvidos pelo cearense Tiago Santana, uma das preocupações principais que se deve ter diz respeito à relação entre fotógrafo-fotografado. Isso porque o fotógrafo literalmente entra na vida da pessoa. Passa à conviver com seus personagens como parte integrante da família. Eis aí um grande desafio.

“Primeiro é preciso pensar no respeito com o outro. Na maioria dos lugares que eu vou fotografar, bastante no interior, as pessoas te recebem quase como que você fosse da família. Você é muito bem recebido. E chega a ficar até assustado. Então, a partir do momento que as pessoas se abrem, abrem a casa, o coração, a vida, você também tem que ter muito cuidado. Tem que ser recíproco, você também tem que corresponder. Então, no fundo, esse diálogo, a coisa de conversar, é fundamental”, explica Santana.

Contudo, afirma Santana, “isso é um processo que cada um vai desenvolvendo. Essa coisa da relação, do ato de fotografar, como se chegar, enfim, eu acho que cada um vai desenvolvendo, na medida do trabalho. O meu é esse. Às vezes eu chego, converso horas e não faço foto. Sou muito assim. Quando estou fazendo um trabalho desses, vejo uma estradinha e entro. Aí vou, olho, ando de carro. Às vezes eu ando quilômetros, sem fazer nada. Eu acho que isso faz parte do processo. Porque tenho tempo, eu me dou o luxo de ter tempo. Mas, fundamentalmente, é respeitando”.

“Quando eu falo com relação a Benditos , é quase que ser como um romeiro. Dividir com eles aquele momento. A partir daí, as coisas acontecem. A fotografia vem quase que como uma conseqüência disso. Eu acho impressionante, às vezes você está fotografando e as coisas vão se construindo na suas frente. Você está fotografando uma cena, aí vem uma mulher, entra um menino... parece que o universo vai conspirando ali e a imagem vai aparecendo. É impressionante isso”, completa o fotógrafo.

As imagens da literatura de Graciliano Ramos

O Chão de Graciliano é o mais recente trabalho produzido por Tiago Santana, em parceria com o jornalista Audálio Dantas. O livro apresenta dois ensaios: um de texto, que Audálio Dantas está chamando de “arte-reportagem” (uma idéia de resgatar as chamadas grandes reportagens), e outro traduzido em imagens, através das fotografias de Santana.

“É engraçado como as coisas são conectadas. O Chão de Graciliano, de certa forma, nasceu por causa do Benditos , por conta da própria exposição que aconteceu do livro. Acontece que a exposição estava no Sesc Pompéia na mesma época em que ele (Audálio Dantas) estava lá. Então ele viu a exposição e, quando ele foi, dois anos depois fazer um projeto sobre Graciliano Ramos, ele me convidou. Porque ele viu aquele universo, viu que eu tinha fotografado toda a região do nordeste, que eu era uma pessoa sensível àquele universo. O mesmo universo do Graciliano Ramos”, conta Santana.

O livro foi produzido entre os anos de 2003 e 2006, “na medida em que íamos conseguindo apoio” explica o fotógrafo. E completa: “a tentativa de fazer com imagem, o que o Graciliano Ramos fez tão maravilhosamente bem com as palavras. Aliás, um grande desafio”. Uma das obras que serviu de influência para a concepção do livro foi o título Infância . “O livro tem muitas imagens de crianças, porque um dos livros que mais me influenciou foi Infância . Por sinal, aconselho todos a lerem. É maravilhoso. Ele é contado, do ponto de vista de uma criança, a experiência dela durante sua infância no sertão de Pernambuco”.

Como reconhecimento do seu trabalho, e pela primeira vez na sua história, o prêmio da Fundação Conrado Wessel foi dado para sua obra O Chão de Graciliano . “Isso é genial porque, antes, eles só davam para fotografia publicitária, que movimenta mais dinheiro. Então eles premiavam fotógrafos que, na verdade, já eram premiados financeiramente. Diferente do ensaio fotográfico que é difícil de se viabilizar. Muitas vezes são os próprios fotógrafos que pagam por eles. E esse prêmio vai começar a ser dado, anualmente, para ensaios. Eu acho que isso inclusive pode fazer um diferencial na produção fotográfica. Vai estimular muito a produção de ensaios no Brasil”, comemora Santana.

A fotografia que revela

Entre outras características, percebe-se nas fotografias de Tiago Santana a possibilidade que elas têm de revelar a realidade. Isto é, as imagens captadas por ele fazem pensar, provocam uma reflexão sobre os fatos descritos. Carregam, por assim dizer, uma carga de crítica social. Santana concorda com isso. Contudo, mostra toda preocupação que tem em fazer isso de forma inteligente.

“É obvio que, não diretamente, o meu trabalho pode gerar reflexões. Mas não, necessariamente, precisa mostrar pobreza, mostrar o cara como um coitadinho, ali no chão, pedindo esmola. Você pode mostrar de uma outra forma que as pessoas vão ficar sabendo que a situação é difícil. Mas não precisa, necessariamente, mostrar isso de forma explícita, ou jornalística, completamente direta. Muitas vezes apelativa. Eu acho que pode ser sutil, dentro desse mistério. Você pode contar essas coisas, sem necessariamente ser tão explícito. Isso que torna a fotografia interessante. Às vezes você olha uma foto e ela é tão direta que você nem fica com ela na cabeça. Eu prefiro as coisas que vão por um outro caminho, pelas sutilezas. Pelo caos, mas o caos organizado. Pelos fragmentos das coisas, que não precisam estar inteiras para se mostrar”, explica Santana.

E completa: “e por mais que exista uma situação de miséria e pobreza, o que mais me interessa é a força dessas pessoas. Mesmo dentro da adversidade, perceber o que elas representam, o que a gente pode aprender com elas. Essa visão de são uns coitadinhos, que estão sofrendo porque não tem água, isso não existe. Você não pode pensar assim. Tem que pensar que eles têm ensinamentos fantásticos. É uma gente que está desenvolvendo outras forças para continuar vivendo e isso é um grande aprendizado”.

Para ele, “você não tem que entregar tudo já mastigadinho. Você tem que entregar é a coisa inteira, para que as pessoas tentem decifrar um pouco. E ao decifrar, ao tentar fazer isso, as pessoas vão refletindo. Se você já entrega a coisa pronta, quase que didaticamente resolvido, não é tão interessante. Mas existem vários trabalhos dentro da fotografia. Tem todos os tipos de trabalho e cada um tem o seu valor. Aqui eu digo o que eu consigo fazer, o que eu gosto, o que eu produzo. A minha forma de interpretar sobre esse universo. Mas existem várias formas. Desde as mais desconstruídas, às mais formais”.

Todas as fotos acima fazem parte do livro O Chão de Graciliano de Tiago Santana

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